29 de out. de 2003

Críticas à Constituição

Em 5 de outubro último, a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, completou 15 anos. Certamente haveria de ser uma data cívica, se a nossa Lei Maior não fosse tão desrespeitada, e, primordialmente, não fosse um documento político pouco prático.

Inspirada nos princípios da social-democracia (híbrido de capitalismo com socialismo, que, a exemplo do último, só funciona na teoria), a Constituição é hoje um calhamaço com 250 artigos - estes, por sua vez, divididos em outros tantos parágrafos, incisos e alíneas. Somados aos outros 89 inseridos nas "Disposições Constitucionais Transitórias", contam-se quase 350 artigos, que resultam em uma das constituições mais prolixas, minuciosas e detalhistas (analíticas, na terminologia jurídica) do mundo. Segundo o Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, há em nossa Carta Magna 48.381 palavras; na francesa 6.884, e na japonesa 4.661. Não bastasse isso, desde sua promulgação nossa Lei Maior já foi modificada 40 vezes, média de 1 emenda a cada 4,5 meses. E ainda tramitam no Congresso Nacional mais de 1.200 propostas de emenda. Comparando nossa Carta Magna com a norte-americana, de 1787, verifica-se que esta possui somente 7 artigos, que por sua vez são divididos em 21 seções, e desde então foi modificada apenas 27 vezes, média de 1 emenda a cada 8 anos. Esse "caráter temporário" da nossa Lei Maior revela imprudência dos constituintes de 1988, porque incapazes foram de compreender o espírito de pragmatismo e perenidade que deve nortear a elaboração de uma constituição. Uma anedota jurídico-política diz que certa pessoa dirigiu-se a uma livraria disposta a adquirir exemplar da Constituição; lá chegando, foi informada pelo livreiro que naquele estabelecimento não se vendiam periódicos...

Muitos daqueles quase 350 artigos inseridos na Lei Maior tratam de matéria não-constitucional, e por isso deveriam estar contidos em legislação ordinária. É o caso, por exemplo, do artigo 228, que afirma que menores de dezoito anos são penalmente inimputáveis. Tal preceito, pela sua própria natureza, não deveria estar inserido em uma constituição, e sim em um código penal. E mesmo a sociedade exigindo que menores de dezoito anos sejam penalizados por seus atos criminosos, a Constituição, que requer procedimentos mais formais e difíceis para ser modificada, rigidamente regulamentou aquela matéria, a exemplo de muitas outras que se encontram em seu texto, que tratam de temas alheios a uma constituição, como família, esporte, cultura etc. Decerto concluir-se-á, caso haja estudos, que a maioria das 40 emendas constitucionais até agora promulgadas modificou assuntos não-constitucionais, que, se estivessem contidos em leis infraconstitucionais, não teriam contribuído para o desgaste que nossa Carta Magna sofreu com a grande quantidade de emendas que teve.

Em que pese essa mancada de nossos políticos-constituintes, preocupados que estavam em abarrotar a Constituição de preceitos quantitativos e não qualitativos, a Carta Magna foi e continua sendo enaltecida. Porém, o que se observa é que muitos dos preceitos inseridos na Lei Maior, principalmente aqueles denominados "direitos sociais", não passam de alucinações teóricas. É o que se depreende ao analisarmos seu artigo 6o., que considera "direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados", significando que o Estado obriga-se a garantir esses "direitos" caso as pessoas não disponham de meios próprios de possuí-los. Em tese, se a turma não tiver dinheiro para comprar a bola de futebol, o Estado (por considerar o lazer um direito) obriga-se a garanti-lo. Esse exemplo justifica a existência dos inúmeros órgãos públicos (ministérios e secretarias, em níveis federal, estadual e municipal) com a finalidade de promover o esporte, pois é "dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um", consoante artigo 217. Eis outro ponto negativo da Constituição, o excessivo rol de "direitos", sem a respectiva contrapartida de "deveres". Cria-se a despesa, sem previsão de receita.

Uma Constituição deve ser um documento que restrinja e limite o poder político, que trate de sua forma e organização, que prescreva os direitos e garantias individuais e outros assuntos relacionados propriamente ao Estado. Deve ser a mais concisa e objetiva possível, para que seja útil à sociedade. Deve ser escrita por aqueles que pagam tributos, não por aqueles que vivem às custas deles. Aristóteles já advertia: "São prósperos os povos cuja legislação se deve aos filósofos". Aqui (ou alhures) ela se deve aos políticos, e o resultado foi uma Constituição que o tempo demonstrou ser muito teórica e pouco prática. Para o economista Roberto Campos, era a "Bíblia dos Demagogos"; para o jurista Celso Ribeiro Bastos, era um "Livro de Ficção Jurídica". Enquanto viger a Carta Magna de 1988, estes epítetos práticos prevalecerão sobre os epítetos teóricos de Ulisses Guimarães, para quem seria a "Constituição Cidadã" e a "Constituiçãodos Miseráveis".